DE NOVO A DEMOCRACIA





O livro de Jason Brennan, Against Democracy, foi-me apresentado como defendendo uma epistemocracia, isto é, um governo dos sábios. Dada a decomposição dos sistema político democrático, mais caracterizado pela conquista de votos e distribuição de benefícios entre uma casta de amigalhaços do que por efectivamente governar, a ideia é tentadora, ainda que fique por explicar o que é um «sábio». 


E contudo, depois de o ler, fiquei extremamente decepcionado. 


O argumento é mais ou menos o seguinte. Há votantes ignorantes, facciosos (raivosos) e racionais. Estes últimos são raríssimos. O que Brennan pretende é reservar o direito de voto aos votantes que revelem conhecer suficientemente o sistema político. Ou seja, o que ele propõe é eliminar os votantes pouco instruídos e pouco interessados em política. 


Acho esta ideia completamente disparatada. Isto porque: 


a) Tomado pragmaticamente o sistema democrático não dá poder algum a cada indivíduo, como Brennan nota, mas não é esse o objectivo das democracias: é, sim, o de auscultar um povo, de modo que não se governe contra a população. E nesse sentido os votos individuais não contam: o que conta é a expressão geral dos habitantes de um Estado. Este aspecto é importante, porque não se pode, modernamente, governar contra a população que se governa.


b) E, por isso, qualquer pessoa tem o direito de exprimir a sua opinião. Mesmo uma pessoa que não sabe quase nada de política sabe se vive bem ou mal, e essa opinião tem de contar. 


c) Reservar o direito de voto a quem domina a política praticamente garante que só votariam as pessoas facciosas — os fanáticos da política, maioritariamente extremistas que se informam sobre o sistema para defender uma teoria política qualquer. Quantos comunistas extremistas, liberais radicais, libertários, neofascistas muito informados conheço? Muitos. Quantos moderados bem informados conheço? Poucos, precisamente porque, sendo moderados, sabem mais ou menos como funciona o sistema mas, não sendo apaixonadamente a favor de uma ideia, não o estudaram com a ideia de tomar o poder. 


Por tudo o que disse (e mais que não disse) a proposta de Brennan não levaria nunca a uma epistemocracia mas sim a um agravamento das tensões tribalistas. 


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Dito isto, que formas de epistemocracia seriam possíveis para impedir a vergonhosa situação de haver uma sistemática manipulação da verdade quando das eleições? 


Defendo, há muito tempo, que o problema é da estrutura do poder, não do eleitorado. Ou seja, é necessário garantir que o poder é, minimamente, de qualidade, precisamente o que não tem acontecido. 


Não é aqui o sítio para fazer propostas concretas (embora as tenha). Mas é o poder que tem de ser regulamentado, é a qualidade dos governantes que tem de ser escrutinada. Tal como para se ser engenheiro, médico, jurista ou arquitecto é precisa uma formação específica, para se ser político também isso deveria acontecer. 


Bem sei que a ideia é quimérica, é impossível que os partidos actuais a aceitassem, e que tem várias dificuldades. Mas isto sim, seria uma epistemocracia que mantém a democracia.

Rodrigo Sá-Nogueira Saraiva

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