Uma visita à Bertrand – e os livros sobre «o retorno do fascismo»
Fico espantado com a quantidade de livros novos que saem a defender a «democracia contra o fascismo».
Demos de barato que o termo «fascismo» já não significa o que originalmente significou. Significa então o quê?
Tudo quanto seja contra a ausência de barreiras (diferenças de sexo, fronteiras entre países, diferenças de civilização) e, em particular, tudo o que seja defesa de «diferenças» (entre sexos, entre países, entre civilizações) passou a ser «fascismo».
«Democracia» passou a ter um significado diferente, também – não que alguma vez o tenha tido de forma inambígua. Mas agora significa «o sistema em que vivemos». Como esse sistema se opõe à delimitação de «diferenças» e defende, no fundo, a destruição de todas as categorias classificatórias (mais ou menos como se tivéssemos uma palavra para todos os substantitivos e outra para todos os verbos, uma palavra para todos os nominativos, acusativos, dativos e genetivos – esta última está em curso no que toca ao sexo). Ou seja, «democracia» significa, no presente, «destruição de qualquer delimitação».
Estou certamente a exagerar e a simplificar. O que se passa é mais complexo.
Génese da situação presente
Depois da guerra houve a compreensão de que as ideologias, e particularmente os nacionalismos, eram muito perigosos. Foi o triunfo das ideologias «internacionalistas» (os socialismos) que, contudo, não se traduziu no triunfo do socialismo mas de uma espécie de consenso do centro (democracia cristã e social democracia, em alternância mas fundamentalmente de acordo quanto ao modelo social, económico e anti‑ideológico).
Ou seja, os anos de pós‑guerra foram anos em que a luta ideológica era muito pequena: mais políticas sociais, mais políticas de crescimento ecocómico eram as únicas questões discutidas. Dessa discussão surgiu um alargamento enorme da classe média – um termo que usurpou o significado anterior, que era o de «burguesia milionária», média porque entre povo e aristocracia.
A essa nova «classe média» foram dados valores: mais salário, melhores férias, viagens, carros, televisores. Ou seja, entrou‑se na sociedade de consumo que, achava‑se, era boa para a economia (mais circulação de capital e mais criação de empresas) e para as pessoas, que viviam melhor. Um outro aspecto importante é que as grandes discussões estavam atenuadas: se é verdade que ainda havia o mito do comunismo como salvação da humanidade, relativamente poucas pessoas lhe aderiram (creio que, depois da guerra, não houve um único partido pró‑soviético que tenha sido eleito). Deus passou a ser menos e menos importante, as Igrejas foram ficando vazias (no presente, na Holanda, já se vendem), e as pessoas viviam num materialismo confortável.
Com esse conjunto de valores hedónicos, apareceu um outro: a libertação da sexualidade. Os contraceptivos libertaram a sexualidade quer feminina quer masculina derrubaram mais uma barreira, mais um interdito ao prazer. (Explico‑me: masculina e feminina porque antes dos contraceptivos o sexo, a não ser com prostitutas –e a maioria dos rapazes não as frequentava–, era arriscado para os rapazes também: e se tivessem um filho?).
Apareceu então uma ilusão, a do crescimento contínuo, ilimitado, possibilitado pela tecnologia. O futuro parecia radioso, os poucos filhos que se tinha mas que sobreviveriam graças aos progressos da medicina ganhariam mais do que os pais e assim para sempre.
A educação também se alterou. As crianças passaram a «ter voz» e, mais grave, quer crianças quer adolescentes passaram a ter uma indústria que lhes era dedicada. Desenhos animados parvos mas inofensivos, bandas desenhadas francamente deseducativas (os heróis da Marvel), bandas de música violenta e apeladora do «prazer já» e de um ethos clástico, bem a gosto dos adolescentes foram uma parte dessa mudança. Outra parte foi o aligeiramento dos curricula, a ruptura com o passado, com a disciplina, com a hierarquia. Sem falar das catastróficas reformas «ideológicas», o ensino quis‑se mais tecnocrático, mais orientado para as necessidades do tempo, menos preocupado com o passado e, sobretudo, pretendeu cortar as disciplinas «nacionalistas» (que o eram) como a História, que se transformou para além do compreensível.
Ainda no fim dos anos 60 apareceu um alarme: o ambiente e a superpopulação. Mas foi o preço da energia, que subiu brutalmente em 1973–4, que veio realmente ameaçar este sonho. Ainda assim, ultrapassada a crise, as coisas mais ou menos retomaram o seu curso.
Talvez o acontecimento mais marcante do pós‑guerra tenha sido a implosão da URSS, em 1991. As consequências foram duplas: encorajou o sistema liberal e desfez, por uma vez, qualquer sonho ideológico. Disse acima que a única ideologia que sobrou depois da II Guerra foi o socialismo marxista. Com a queda da URSS deixou de haver ideologia, já que o liberalismo havia muito abandonara qualquer ideologia para se centrar apenas nos indicadores económicos. Este acontecimento, considerando que a China já abandonara o sonho do capitalismo de Estado (em 1978), esvaziou completamente os europeus de ideologia. Como na altura cheguei a escrever, os marxistas, que rejeitavam todos os valores «burgueses» ficaram sem ideologia e passaram a deleitar‑se no pós‑modernismo, a afirmação de total ausência de valores.
Este período durou ainda alguns anos sem convulsões ou acontecimentos graves, ainda que, em alguns países, despertasse a consciência da necessidade dos valores tradicionais. E foi então que se começou a falar do regresso da extrema‑direita – não era totalmente falso, se tomarmos em conta Jean‑Marie Le Pen.
Mas foi mais tarde, em consequência da baixíssima natalidade dos europeus (estou a falar da Europa) e do sistemático encorajamento à imigração qe começou a haver reais problemas. A imigração foi outra barreira que se quis fazer cair, desta vez por motivos pragmáticos: quem iria substituir os proletários europeus passados às classes médias? Mas viria a ter consequências graves, como se vê no presente, porque o multiculturalismo não funcionou com nenhum dos modelos nem em nenhum dos países em que foi procurado.
Entretanto, o modelo do crescimento perpétuo, baseado na dívida que era compensada pelo crescimento da economia, deixou de funcionar. Houve muitos sinais antes, mas foi com a crise das dívidas soberanas que a questão se tornou mais clara. Na altura compreendeu‑se que o sistema estava longe de estar regulado e que era apenas uma gigantesca pirâmide de Ponzi. Fez-se alguma coisa? Sim: espoliou‑se as classes médias entretanto criadas para manter o sistema, sem alterações.
Disse que, depois da guerra e depois da queda da URSS, as ideologias foram aniquiladas. Mas, não chegando ao poder pela via mais radical, de reformulação social, chegaram lá por via cultural. A esquerda não podia oferecer já a ideia de alternativa económica para as injustiças sociais e tornou‑se liberal, acentuando o problema da desigualdade (os sistemas económicos tendem para a desigualdade, não o contrário); ofereceu, em vez disso, os problemas raciais. A base era o mesmo pensamento primário explorador/explorado = algoz/vítima, mas agora com a identificação do malvado como o homem heterossexual branco.
A reacção era inevitável: mal pagos, expoliados por impostos, com empregos cada vez mais precários, e ainda por cima culpados de todos os crimes, os heterossexuais brancos –afinal os habitantes historicamente autóctones da Europa– reagiram.
Não se pode esperar, das massas, reacções inteligentes. O que surgiu foi descontentamento, explorado por populistas. Alguns dos chefes populistas são sinceros, outros apenas aproveitam a onda. Mas alguns identificaram correctamente o problema: é o próprio sistema que não funciona, é a dissolução de todas as barreiras o problema, as nações não podem funcionar com multiculturalismo, as famílias não podem deixar de existir, o perigo de as nações europeias serem, na prática, dominadas por outra cultura existe. Algumas das reacções identificam também o problema da fraqueza do Estado perante os oligopólios – mas de forma nenhuma todas. Quase todas as reacções populistas são «de direita» apenas porque a política de destruição de todas as categorias sociais é um projecto de esquerda e, talvez sobretudo, porque mesmo o capitalismo actual adoptou uma ideologia que promove a dissolução dessas categorias. Por isso Soros e a sua fundação promovem indistintamente o capitalismo financeiro e os movimentos «woke».
A origem de tudo isto?
Falei da génese. Mas, conceptualmente, o que se passou?
A sociedade do Séc. XIX morreu com a I Guerra. A partir daí opuseram‑se duas forças: a esquerda marxista e os nacionalismos agressivos. Nenhum desses movimentos era conservador – ambos eram revolucionários, agressivos, ambos queriam um mundo novo (de resto, os nacionalismos agressivos têm origem num reintrepretação do marxismo revolucionário, por mais que custe aos esquerdistas aceitá‑lo). Ou seja, depois da I Guerra acabou o conservadorismo.
Este facto, por mais que choque ou custe a compreender –sobretudo em Portugal, já que o salazarismo era, de facto, um conservadorismo e não um nacionalismo agressivo– tem consequências enormes.
É que as sociedades têm de ter quadros estáveis para existir. Com o progresso tecnológico mas, sobretudo, com o aparecimento de movimentos marxistas e de direita revolucionária, os quadros tradicionais foram abandonados.
Coisa importante, mesmo quando o nazismo foi vencido, e mesmo não tendo triunfado, na Europa, o comunismo mas um liberalismo moderado, os quadros do passado não voltaram.
De Deus, Pátria, Família, Trabalho, restou apenas o Trabalho e já não como dever mas como maneira de melhorar a vida material. Por outras palavras, os valores indiscutíveis («transcendentes») desapareceram e foram substituídos por valores concretos.
Enquanto a sociedade cresce de uma maioria de proletariado e campesinato para uma pequena burguesia, este estado de coisas pode‑se manter. Mas quando o processo de ascenção social termina e pior, se inverte, tudo o que resta é a revolta contra o sistema que frustrou as ambições criadas.
Fala‑se agora muito do nihilismo. É verdade, mas não é um problema de agora. O nihilismo começou com a I Guerra e agudizou‑se depois da II. Quando há esperança de viver melhor, o nihilismo não incomoda. Quando deixa de haver tal esperança é uma tragédia.
É nisso que estamos no presente. Falta de valores, certamente; e falta de esperança. Na ausência de valores e de esperança fica a revolta.
Rodrigo Sá-Nogueira Saraiva
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