ENVELHECER É UMA MERDA



Passei muitos anos a achar-me imortal. Intocável. A achar que as coisas só aconteciam, de facto, aos outros. Que só os outros passavam por acidentes de automóvel e que só aos outros aconteciam coisas terríveis. Eu estava aqui, incólume, a assistir ao mundo a acontecer. 

Passei anos a achar que ia morrer aos 18 porque chegar aos 18 era uma vitória. Depois de os passar, vivi largos anos a considerar que o inesperadamente mau nunca aconteceria na minha vida. Que jamais perderia um filho ou nunca teria um cancro. O quão inimaginável é esta sensação de impermeabilidade ao que é mau!

Foi pouco antes de completar sessenta anos, que senti a tangência. O limite da probabilidade da finitude. E, mais do que isso, a clara sensação que envelhecer é uma merda. 

Envelhecer e aceitar a perda. A perda dos outros e as nossas. A perda de memória. De agilidade. A perda de domínio do nosso corpo. Envelhecer é perder esse controlo das coisas. Dos dias. 

As rugas que teimavam em não aparecer surgem de um dia para o outro.  Subitamente, acordamos e temos dores nas mãos e as costas moem o dia inteiro de anos a fio carregando pesos e compras para o 3º andar, de posturas tortas frente ao computador. Há um dia em que o corpo cobra tudo de uma vez. Cobra as noites mal dormidas e os excessos de sábado à noite. Um dia, acordamos com o cabelo mais branco e a pele mais flácida e fazemos o exercício diário que devemos aceitar isso como uma dádiva. Que é suposto abraçarmos o tempo a causar danos em nós. Porque é a lei da vida. Porque nos alimentamos bem e fazemos corridas de manhã enquanto um coágulo se forma no hemisfério esquerdo para rebentar daqui a 5 anos e não damos por nada. Não fumamos e não comemos açúcares para surgir um tumor nos intestinos que nos leva em duas semanas. 

Nesse dia, em que deixei de acreditar na ingénua sensação de imortalidade, envelheci. E envelhecer é uma merda. Digam o que disserem. Envelhecer com dignidade e admiração não é para todos. Com respeito pelo que o tempo faz questão de deixar marcado no nosso corpo. Não é fácil. É das mais ingratas tarefas: abraçar a falência do sistema que nos concede existência corpórea no mundo. A perda inevitável do que sempre foi nosso, dado como garantido. Os pulmões que nunca falharam ou o domínio da bexiga. 


Hoje, conversava com um amigo. A avó está num lar. Confunde, por vezes, os netos e os filhos com outros membros da família. Não quer lá estar. Nunca quis. A casa onde vivia foi vendida e estão, agora, a desfazerem-se dos móveis. Ela não sabe e não virá a saber. Porque nunca mais vai regressar à casa onde criou os filhos
. Onde envelheceu com o marido. Onde tem as suas roupas e fotografias. Nunca mais vai regressar a casa.

Envelhecer é uma merda.

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