CONTA-ME COMO FOI
















Antigamente os portugueses eram pobres. Com excepção das famosas 60 famílias da propaganda comunista, com os Mello, os Champalimaud e os Espírito Santo à cabeça, quatro quintos dos portugueses eram pobres. O quinto que sobrava era constituído por gente remediada: médicos, advogados, engenheiros e magistrados em início de carreira, professores, quadros médios da administração pública, gerentes bancários, oficiais subalternos do exército, comerciantes, etc. Uns eram mais remediados do que outros: barões da medicina, da advocacia e da engenharia, juízes do Supremo, catedráticos, próceres do Estado, administradores dos grandes grupos económicos, generais e almirantes. A classe média subsumia esta gente.
Pouquíssimos portugueses tinham automóvel (ou mesmo frigorífico), férias no estrangeiro eram uma miragem, e o acesso ao ensino superior estava reservado aos filhos das classes altas e a alunos brilhantes que obtinham bolsas de estudo: Ernâni Lopes, filho de um alfaiate, é um bom exemplo.
Depois de 1970, a classe média integrou os empregados bancários, muito bem pagos por comparação com outras profissões.
A seguir veio a Revolução.
Camelot ficava na margem esquerda, nos estaleiros navais da Margueira. Qualquer professor de liceu, mesmo se davam pelo nome de Rómulo de Carvalho (i.e., o poeta António Gedeão), Matilde Rosa Araújo, Vergílio Ferreira ou Mário Dionísio, ganhava menos que um operário da Lisnave, sem contar com o facto de os contratos colectivos de trabalho da indústria fazerem dos funcionários públicos os novos proletários.
Dez anos depois da Revolução pouca coisa mudara. Metade das pessoas que tinham carro só o usava aos fins-de-semana. A classe média tout court não ia a restaurantes de luxo. Viajar era caro porque um dólar americano valia (em 1984) qualquer coisa como 90 escudos. Comprar caramelos em Badajoz era tão excitante como ir hoje ao Dubai.
De repente, a Europa e os juros baixos viraram Portugal do avesso.
O crédito à habitação, um estratagema congeminado para absorver o meio milhão de retornados das antigas Colónias (e, mesmo assim, com regras difíceis de ultrapassar), foi sucessivamente alargando o seu âmbito. No fim de 2010, ainda os bancos emprestavam 110% do valor da casa, a pagar em catorze prestações anuais. Outros metiam carro no pacote. E muitos garantiam uma verba suplementar para “recheio”. Não era por acaso que Lisboa tinha uma loja de sofás importados em cada esquina. (Estão a fechar à velocidade da luz.) As agências de eventos não tinham mãos a medir. Tirando os excêntricos, nenhum aluno do “superior” usava transportes públicos. As universidades oferecem 900 cursos, dos quais o mercado reconhece 10. Centenas de milhares de portugueses fizeram férias em Cuba, na República Dominicana, no Brasil e na Tailândia. As companhias low cost puseram gente improvável a voar várias vezes ao ano. O cabeleireiro mais obscuro senta os clientes em cadeiras de design italiano. Restaurantes fashion cobram 50 euros por gororobas sem nome.
E, de repente, somos pobres.
Por efeito do corte dos subsídios de férias e Natal, funcionários públicos e pensionistas vêem o seu rendimento anual bruto diminuir 15%. Portugal tem hoje uma taxa de desemprego alarmante: 15,3% da população activa, a terceira maior da Europa, logo atrás de Espanha e da Grécia. Somando as pessoas que não estão inscritas nos centros de emprego, o índice é superior a 18%. A percentagem de jovens (os que têm menos de 24 anos) atinge 36% do total. Só no primeiro trimestre de 2012, duas mil e trezentas casas foram devolvidas aos bancos. O garrote fiscal aperta. A emigração está muito perto dos valores de 1960.
Who cares?
Por Eduardo Pitta em:
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