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O símbolo de Lisboa, romantismos à parte, é o tuk-tuk, preparado para mostrar aos milhares de turistas os pontos que devem visitar na capital portuguesa – o elétrico domina os postais e os ímanes, mas os tuk-tuks tomaram mesmo conta das ruas da cidade.
Os elétricos, frisou o jornal espanhol ‘El País’, são transportes rígidos, incapazes de se desviarem um milímetro do seu percurso, enquanto os tuk-tuks andam a toda a velocidade, desrespeitando muitas vezes as regras de trânsito para facilitar uma boa fotografia e dando aos seus passageiros aquela sensação frívola, de que estão em férias. E assim, sem perceber, Lisboa entrou no clube das cidades carismáticas que só fazem felizes os visitantes.
“Acho que até deixou de alegrar os turistas. Há pessoas que vieram há anos e, quando regressaram recentemente, descobrem que não é a mesma coisa”, aponta Tânia Correia, que nasceu no Castelo de São Jorge, em cuja encosta foi construída a Mouraria, um bairro labiríntico para albergar os habitantes muçulmanos quando a cidade foi conquistada por Afonso Henriques em 1147 e onde hoje convivem residentes de 50 nacionalidades.
A Mouraria é um dos seis bairros históricos que pertencem à Junta de Freguesia de Santa Maria Maior (com 10 mil habitantes). Seis bairros joias (Castelo, Mouraria, Alfama, Chiado, Sé e Baixa), repletos de história e cultura, que são hoje as ruas preferidas de investidores imobiliários, empreendedores turísticos e motoristas de tuk-tuk.
A Lisboa cool de roupas penduradas, azulejos e fachadas coloridas que no ano passado foi eleita o melhor destino urbano da Europa nos ‘World Travel Awards’. A Lisboa que perdeu perto de 30% da sua população desde 2013. A Lisboa onde 60% das habitações são apartamentos turísticos. Se o ritmo de expulsão dos locais não parar, dentro de alguns anos os turistas só poderão vê-los quando subirem Alfama.
Em plena crise do euro, enquanto o país estava sob intervenção, o Governo conservador aprovou uma lei que permitiu a atualização de alugueres antigos e levou a múltiplos despejos. Paralelamente, a entrada de capital estrangeiro foi incentivada através de políticas fiscais agressivas (reformados de outros países que se mudassem para Portugal não pagariam impostos até 2020) e da criação de vistos gold, que proporcionavam residência legal a não comunitários em troca de investimentos em bens imóveis. Os chineses tornaram-se os proprietários mais entusiastas de Lisboa. Tudo isto teve uma coisa boa: a face da cidade foi reabilitada e embelezada. E algo muito mau: uma deslocação massiva de portugueses para a periferia.
“Perdemos população nos últimos 11 anos porque as pessoas foram forçadas a sair não só por causa da grande crise económica, mas porque o Governo de direita que existiu durante os anos da troika aplicou medidas que permitiram expulsar pessoas, e que coincide também com a entrada em cena de uma atividade aparentemente inofensiva, os apartamentos turísticos, profundamente invasiva para as pessoas”, lembra Miguel Coelho, presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior.
O impacto da chamada lei Cristas, que liberalizou as rendas sem cerimónias, foi tal que a junta de freguesia acabou por desenvolver a campanha ‘Rostos dos Despejos’, onde os vizinhos expulsos contavam as suas histórias. Coelho acredita que o seu impacto ajudou o governo socialista de António Costa a introduzir alguns travões e a perseguir o assédio imobiliário. Em 2018, foi decretada uma moratória nas zonas saturadas e uma proibição de abertura de mais apartamentos turísticos em Santa Maria Maior, embora Miguel Coelho garanta que agora o fazem de forma ilegal.
Agora a junta de freguesia pretende combater o êxodo com um programa ‘Regresso ao Bairro’, dirigido a pessoas que foram obrigadas a sair nos últimos 15 anos. Uma delas poderá ser Tânia Correia, obrigada a abandonar o bairro do Castelo quando os proprietários decidiram vender o edifício. “Queria comprar o meu apartamento, mas a divisão horizontal não foi permitida e fui obrigado a vender todo o imóvel. Quando o meu contrato acabou, não me renovaram”, lembra.
Correia cresceu numa das casas construídas dentro da muralha do Castelo de São Jorge, onde também queria ver o filho crescer. Embora há cinco anos tenha tido de se mudar para a Buraca, nos arredores da capital, e agora passe uma hora em transportes públicos para chegar ao trabalho numa multinacional de seguros no centro, o Castelo continua a ser o seu bairro, onde ainda permanece a sua mãe, que conhece apenas alguns vizinhos. “Posso compreender que precisamos de vender o nosso país para capitalizá-lo porque somos pobres, mas pode ser vendido para atrair turismo de luxo e não turismo de baixo custo”, acrescenta.
A lei impede o despejo de moradores idosos, mas todo o resto é regido pelo mercado. Onde existiam cortiços, agora existem apartamentos turísticos. Onde existia a mercearia, a tradicional mercearia, existe hoje um moderno bar. A vida coletiva, que se estruturava em torno da escola, dos pequenos negócios e das associações de bairro, definha, embora os nostálgicos da diáspora regressem todos os fins de semana.
Portugal recebeu mais turistas (30 milhões) e receitas (25 mil milhões de euros) do que nunca em 2023. E Lisboa é imperdível, uma daquelas cidades que construiu carisma tanto pelo real, pela sua singularidade geográfica e urbana, como pelo imaginário.
Os visitantes agora entram em novas lojas que parecem antigas, enquanto as autênticas desaparecem. A Casa Senna fechou recentemente após 189 anos no Chiado, assim como a livraria Ferin. Ser uma das mais belas e a segunda mais antiga – foi fundada em 1840 – não a salvou do desastre. No disputado coração dos turistas só há lugar para uma livraria histórica. E ninguém, por mais velho que seja, pode competir com o Bertrand, inaugurado em 1732 e, portanto, segundo o ‘Guinness’, o mais antigo do mundo. A poucos metros de distância, a histórica Paris, em Lisboa, que oferece roupa de cama e mesa de linho e algodão, afixou uma placa alertando os grupos para não se aglomerarem em frente à sua janela. Aberto no século XIX, é um dos poucos negócios tradicionais que ainda sobrevive no Chiado, entre a febre dos pasteis de nata, dos ímanes e das lojas de pasteis de bacalhau.
O vintage está em alta como decoração para turistas. O tradicional está deslocado. Maus tempos para uma instituição cultural como a Academia de Amadores de Música, fundada em 1884 no centro de Lisboa e obrigada a abandonar a sua atual sede na Rua Nova da Trindade no espaço de um ano. Depois de ultrapassarem durante uma década os efeitos da lei Cristas, os proprietários aproveitaram uma lacuna legal em 2023 para aumentar a renda mensal de 540 para 3.800 euros. “Só com um mecenas conseguiríamos arcar com os alugueres da região”, afirma o seu presidente, Pedro Martins Barata.
A academia faz parte da história cultural e política de Lisboa: entre os seus parceiros estiveram os escritores José Saramago e José Cardoso Pires, e entre os seus professores, grandes compositores. Talvez sem a academia não teria existido os Madredeus, o grupo que triunfou em todo o mundo com a sua procura pela música tradicional fora do fado, já que tanto a vocalista Teresa Salgueiro como o guitarrista Pedro Ayres Magalhães foram formados na escola.
Assim como as pessoas, as instituições e os negócios ligados à cultura também são expulsos para a periferia. Pedro Martins Barata adora a sua cidade mas já não a reconhece: “Quando vou à Baixa ou ao Chiado sinto-me como se estivesse num parque de diversões para estrangeiros. A ideia do Chiado como centro da vida cultural de Lisboa já desapareceu. Exceto teatros e museus, que não podem ser alterados, quase tudo são lojas de grifes internacionais ou de souvenirs”. “O turismo dizimou tudo”, conclui.
Com Francisco Larangeira
Esse conceito de "cidade para turistas" é velho e foi, também aplicado na Figueira da Foz, desde que me lembro. É uma mágoa que tenho com a cidade; ainda em criança percebi, com decepção, tratamento preferencial que os poderes locais davam aos "banhistas" em detrimento das populações locais e que perdura no tempo. (Curiosamente, podemos fazer uma extrapolação para todo o país, hoje!). Já quanto à morte das cidades, compreendo o autor, passa-se algo parecido, por exemplo, relativamente a Buarcos. Uma decepção! Porém, ontem mesmo, e hoje, dei um largo passeio a pé pela periferia da cidade, e emergiu um sentimento novo; o de que as cidades são organismos vivos; desdobram-se, expandem-se, transfiguram-se, modificam-se! ruas, arquiteturas, atividades económicas - sem economia, as cidades, inexoravelmente, morrem. Sendo sempre desejável preservar a identidade histórica e humana das cidades, estas estão sempre reféns das necessidades de financiamento dos organismos públicos, por sua vez tomados pelas novas elites políticas e corporativas. Quanto a nós; ou adaptamo-nos ou afastamo-nos. Pouco mais mais podemos fazer.
ResponderEliminarÉ verdade António, as cidades, tal como as pessoas (Darwin) necessitam de dinâmicas de mudança e adaptação a novas realidades, para sobreviverem.
ResponderEliminarPor vezes as mudanças são tão radicais que chegam a matar cidades (ex. Detroit), deixando rastos de decadência e até abandono.
No caso da nossa Figueira/Buarcos e arrabaldes, estou em crer que, perante o definhamento do "produto" praia, o grande negocio/vocação do burgo, é uma grande estância de residentes seniores aposentados, designadamente estrangeiros, considerando a localização, paisagem, tranquilidade etc. na óptica do que se convencionou designar por cidade com qualidade de vida, de baixo dinamismo económico.