O INVERNO PORTUGUÊS































O INVERNO PORTUGUÊS


No final de 2014 as ruas do centro da cidade pejadas de gente, apresentavam um frenesim quase festivo, como se os tempos fossem de grande excitação, como aconteceu em 1998, quando Lisboa exibiu o grande evento de auto-exaltação nacional – a Expo 98. Os dias estavam bastante soalheiros, embora anormalmente frios, que convidavam nacionais e muitos turistas estrangeiros a passeios pelas principais ruas da Baixa e do Chiado, onde se sentia como que uma aproximação à fruição do chamado espírito de Natal, tão ao jeito das principais capitais europeias, caracterizado pelas ruas plenas de ambientes alegres, feéricos, com coloridas e apelativas aldeias e mercadinhos de Natal, mas que em Lisboa, um cinzentismo qualquer, não deixava espaço para essa dinâmica de festa à maneira europeia.

Há muitas décadas convencionou-se que o clima em Portugal era particularmente ameno e agradável, com primaveras e outonos suaves, de temperaturas mediterrânicas e verões por vezes escaldantes, sendo que o inverno era de curta duração, com frio e chuva quanto baste, mas que passava depressa. Daí que não se afigurava necessário casas construtivamente aquecidas, além de que as populações, maioritariamente pobres ou remediadas, mesmo que quisessem, não tinham recursos para climatizar as suas casas, um luxo totalmente inacessível. Mesmo o lume das lareiras das cozinhas das casas rurais só aquecia ao redor, mantendo-se o resto da casa fria e húmida nos dias e nas noites tristes do inverno português. 

Com o advento da democracia em 1974 e com o alargamento da melhoria das condições de vida das populações, começaram a surgir lá por volta dos anos 80, os apartamentos com lareira e mais tarde o aquecimento central em muitas habitações, proporcionando às classes médias emergentes aquele conforto idêntico ao que sentiam nos edifícios e casas das cidades europeias.

Acontece que chegados aos anos da (des)graça da crise económica e social, as famílias começaram a cortar nas idas ao restaurante, na troca do automóvel, etc. e também, muito particularmente, na conta de gás e da electricidade do aquecimento das casas, pelo que, com ou sem lareira ou aquecimento central, as casas portuguesas, quer sejam as antigas ou as mais recentes, continuam desconfortáveis, por invernos cada vez mais frios e prolongados.

Só entrando nos espaços públicos, lojas, restaurantes e centros comercias climatizados é que se sente aquele conforto quentinho de inverno típico dos outros países europeus, que nos alenta a alma e o corpo gélido. Quando saímos destes ambientes confortáveis e voltamos às ruas, sentimos de imediato o contacto com aquele friozinho atlântico e cortante que nos gela os ossos e a alma.


Costuma dizer-se que nas cidades europeias (como Portugal não fosse Europa), as temperaturas embora baixas, são mais suportáveis. Vá-se lá saber porquê? Por alguma razão as salas de leitura da FNAC do Chiado em Lisboa e de Sta Catarina no Porto, ou de outros espaços públicos quentinhos e confortáveis, têm sempre muita gente no inverno. Sempre se disfarça o desconforto e por vezes a solidão da rua, com uma boa leitura ao quentinho, em silêncio e acompanhado por estranhos, mas acompanhado.


Vem isto a propósito daqueles dias de inverno marcados por deambulações pela Baixa/Chiado, que descambam em programas solitários, como uma ida ao cinema Ideal ou a uma conferência na Academia das Ciências, espreitar uma sessão de apresentação de um livro, fazer umas leituras na Biblioteca Camões, na FNAC ou na Bertrand, ou outro qualquer evento, que por ali no Chiado sempre acontece. Por vezes sente-se vontade ou necessidade de continuar rodeado de gente, prolongando artificialmente a companhia humana, antes de regressar a casa, e àquele conforto protector, mesmo que solitário, que sentimos quando entramos no nosso espaço.

O inverno também contempla o Natal, que se sucede invariavelmente ano após ano, nas suas comemorações e tradições, sejam elas as de natureza judaico-cristã, envolvendo o espírito de família amiga, ou as de natureza consumista caracterizadas pela ambiências decorativas do designado espírito de Natal. E assim todos aqueles enfeites dourados, brilhantes encarnados e afins, invadem precocemente (logo a partir de Outubro) o nosso dia-a-dia com musiquinhas alusivas por onde quer que andemos, nos supermercados, centros comercias e até nas ruas da cidade, para não falar das incontornáveis e comerciais iluminações e decorações de espaços públicos, bem como do bombardeamento de "jingles" e anúncios nas rádios e TVs.

Quem não se sentir confortável com estes ambientes, terá que se habituar ou tentar passar ao lado, tarefa difícil, uma vez que “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”, como se cantava numa balada de intervenção política nos idos 70.

O Natal pode também trazer algum desconforto a muitas pessoas que, pelo facto de não terem vivências e referências no seio de famílias tradicionais estruturadas, ou não terem mesmo família constituída. Como farão então para participar na incontornável comemoração da noite de Natal em família? Ou assumem a rejeição da coisa, refugiando-se solitáriamente no seu canto, com o peso psicológico consequente ou não, ou tenta adaptar-se ao espírito da quadra, comemorando-a no seio de uma família amiga. E ele há tantas famílias amigas, sempre dispostas a receber um solitário na sua festa feliz naquela noite mágica. Aqui poderá ser pior a emenda que o soneto. Enquanto dura o convívio e a comezaina tudo bem, mas quando chega aquela hora mimosa da troca dos presentes, entre adultos, crianças e jovens inebriados pelo espírito da coisa, o amigo extra-familiar é brindado também com o seu presentinho, e ali fica meio sem jeito, numa comemoração que não é sua, esperando que o tempo passe depressa para regressar a casa.

No fim de ano a coisa não é muito diferente, embora esta comemoração não obrigue ao espírito de família, sendo normalmente comemorada com mais gente em ambiente mais festeiro e social. No entanto, chegando novamente a meia-noite, depois dos brindes e dos votos, lá surgem os abraços e os beijos dos conjugues, familiares e afins, ficando o herói solitário entregue à sua sorte de abraçar todos e não abraçar ninguém, e a mais um eventual desconforto, mesmo que instantâneo, que tentará dissimular no convívio da festa.

A trilogia comemorativa social invernosa, completa-se com as comemorações pagãs do carnaval, que se consegue contornar mais facilmente, uma vez que não implica uma participação notória em representações sócio-familiares como o Natal e o fim-de-ano. No entanto algumas cidades portuguesas insistem em exibir cortejos carnavalescos, por vezes pífios, inspirados na tradição brasileira, que faz com que moças bem despidas tiritem de frio, nos invernos de Fevereiro, sonhando com desfiles esplendorosos nos calores da Marquês de Sapucaí no Rio de Janeiro. 

Muitos solitários tentam integrar estas comemorações numa lógica de pertença social a grupos de amigos e afins, integrando também solidões dispersas. Com o tempo e o amadurecimento aprende-se a viver entre os pingos de chuva das comemorações e representações sociais, assumindo lúcida e autenticamente a verdadeira dimensão da realidade, ou seja uma espécie de solidão acompanhada.

O inverno também nos traz insistências teimosas de curtas estadias em cidades de praia, especialmente naqueles dias de chuva, frio e vento, que à parte de um romantismo serôdio de contemplação do mar em dias de tempestade, subsiste aquele desconforto de passear sob o céu gris da invernia, em ruas frias, molhadas e desertas. Aqui ocorre-nos que o verão regresse quanto antes, para que aquela ambiência desoladora de inverno em cidade de praia, se transforme rápidamente em areais de sol e mar, e as ruas cheias de gente e de automóveis, nos devolvem a sensação de estar no centro da excitação da designada silly season, ou seja a estação parva.

João Saltão 

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